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sábado, 18 de janeiro de 2014

Desistida


Bem no meio da reza, parou. Deu-se conta de repente: não havia mais por que rezar. Uma elucidação repentina? Recado do além em pessoa? Claro, só podia ser isso! Um psicopata!

Só um poderia com a crueldade do cenário e continuar parado. Olhos postos nos detalhes ínfimos daquela finitude carnal. Não cabia outra explicação. Só podia ser isso, uma doença clínica, uma anomalia genética. Aí sim, entenderia a tudo. Psicopatia: Indivíduo caraterizado por ausência de empatia, piedade e remorso. É extramente manipulador, sádico, perverso.

Estava explicada aquela permanência diante do corpo agonizante. Impassível. Sem demonstrar qualquer reação ou esboçar a menor expressão de desconforto. E estavam só os dois ali: vítima e observador. Nem serviria como testemunha. Não dizia palavra. Prosseguia olhando, braços cruzados, imóveis, ambos. Um corpo vivo e um quase póstumo. Esperava. Testemunhando cada gota se esvaindo dali, encarnando o piso. Músculos desistindo de movimentos. Ar, cada vez mais, sendo sorvido na urgência. E ele, irredutível, sem fazer nada, nada! Nem socorrer nem chamar por socorro.

Aquilo tinha durado mais tempo do que a novena mais longa. Só não se conformava: nem uma vela de 7 dias protegida do vento e uma Oração poderosa, seriam capazes de esclarecer a tudo antes que fosse tarde. Soprada dos lábios na tarde vazia. Desistida. Se era um caso psiquiátrico, nada tinha a ver com fé e milagre. Até poderia julgar-se merecedora de um que permitisse perdoar. Mas como apagar da memória a frieza revelada? Ele era capaz de tamanha indiferença? Não conseguia conformar-se com a súbita certeza que se erguia em meio a tantos cacos quebrados, incertos de futuro. Colar para que, se para sempre mostrariam vítreas cicatrizes? O máximo que se pode fazer de cacos, são mosaicos ou vitrais para um mausoléu.

Iletrada, novenas e rezas dotadas de poderes a mais, eram tudo que lhe restava saber decor. Psiquiatria, jamais! Nada sabia sobre isso. Mal concluíra o Segundo grau. Precisava apenas entender para prosseguir. Desistida. Aquilo era demais para sua rasa compreensão das coisas do mundo. Mundo mudado este de hoje em dia. Ana Maria nunca falou sobre isso, ou falou? Perguntava-se. Ora, se ela soubesse que um ser humano tinha sido capaz de ficar olhando outro morrer ao relento, certamente faria matéria. Especialistas, dicas de como identificar se você tem um em casa, essas coisas úteis e globais; afinal todo mundo pode ser pego de surpresa. Toda família tem problemas. Ela tinha! Tinha acabado de saber por conta própria, mesmo sem faculdade nem nada. Providência divina!

Ao fim de tudo, abortada a missão da prece, tinha os olhos parados. Desistidos. Rendia-se ao fato irrefutável. Piscavam em intervalos maiores de tempo. Mais segundos e a verdade estampada ali, inadiável. Suas mãos desunidas. Nada tinha sentido. A última coisa que viu foi o azul nem sempre azul daqueles olhos fixos e frios, eternizados.

Necka Ayala 2013






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