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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Ceia


Dei de comer aos desejos e deixei os medos morrerem à míngua. O Amor é a minha Língua que entôo em cantos e que ofereço aos Guias e aos meus irmãos. Que medos morram de fome — me recuso a alimenta-los. Mas aos desejos, preparo ceias fartas; dou às asas, meus ventos! Polvilho sobre a acidez da razão, temperança. E deixo que a ciência de meu corpo destile o que não serve, cumprindo sua desinência como meu metabolismo queira. Preservo as taças limpas e brilhantes para que se ocupem de ofertar alguma embriaguez tanto sadia quanto passível de ser fuga para o excesso de realidade. Alimento fantasias sobre coisas que voltam a ser um pouco como eram, somas, encantamentos, encaixes, deslumbramentos. Acendo o fogo com calma. Fecho os olhos e abençôo a cada tempero que colho de meu próprio jardim e agradeço. Profundamente grata pelas vidas que seguem sendo regadas em vasos diante da janela, verdinhas, exalando aromas, generosas! Observo como se integram — à medida em que movo a colher de pau pelas bordas, as coisas que escolhi para formarem um sabor que seduza línguas. Alimento aos desejos da Alma, insana e insone, que vaga pela casa às madrugadas caçando linguajares doces, notas e acordes que também se casem numa festa de enlaces. Então durmo. E sonho mais desejos para ter como e por que estar viva. Desejos justificam ir adiante. Medos amarram as pernas, matam o movimento e o avanço — que morram de sede, magros, esquálidos, inúteis, derrotados. A vitória é das coisas que realizo, das coisas das quais faço parte, sabendo que minha parte também perfaz o Todo. Não posso fugir. Não quero! Quero findar essa existência tendo me equivocado por ter tentado, tendo sido mais do que pretendia, tendo feito mais do que desistido. E embora a coragem de Ser também inclua estar exposta aos olhos famintos e julgadores, é a coragem que faz com que se possa concluir com êxito cada empreitada. Depois disso, a coragem nem vem sentar comigo à mesa. Se retira humilde e espera ser necessária novamente. Enquanto descansa, me nutro e dou de comer a novos e mais saborosos e tentadores desejos. Desejos da parcela que me cabe de liberdade, da nudez que me concede a cabeça raspada e a baixa estatura. Desejo de aceitação, de que compreendam que tenho direito de desfilar como queira e como fique à vontade minha Identidade. Desejo de igualdade, de cumplicidade, de comunhão, de sossego, de prosperidade. Sonho. Sonho com tudo que sei ser possível pois depende apenas de que cada um alimente aos seus desejos e deixe seus medos perderem propriedade. Pertenço ao que quero. E sei o que quero, sentindo! A razão deixo para os números e estatísticas, para as listas e para as avaliações. O que sinto me guia e me leva, é ponte, é direção, é ponto de chegada. Atenta somente ao que quero, não resta tempo algum e findo o dia sem ter feito mal a ninguém. Mais um. Mais uma página daquele livro que talvez jamais escreva — de receitas, de troços, de coisas compartilhadas. O Amor é meu idioma, meu dialeto do meu jeito transparente, inquieto, inconformado com quem se deixa confinar — mas ao fim de cada preparo, me deparo de novo com uma certeza: cada um tem sua jornada, as portas que escolhe abrir, as demandas que opta por fazer, os caminhos que resolve seguir e não tendo nada a ver com isso, aceno e me despeço da vida dos outros. Tenho muito a tratar com a minha, na fidelidade ao que brota das sementes, no crescimento das folhas, no raio de sol que se deita sobre o chão da minha casa e dos amigos que chegam para brincar com pequenos alados. Dou de comer aos desejos sim, todo santo dia, toda quieta madrugada. A fé cancela a ansiedade, anula a dúvida, retira o medo e guia minhas mãos no cozimento. O Amor é sim o contrário da morte. A noite é mesmo a mãe dos sonhos. E me sinto honrada por ter aceito o convite dos deuses da arte quando me chamaram serenos, vem . . . vem achar respostas e transforma-las em poesia! Vem aprender como traduzir tuas mazelas. Vem converter tuas vivências tristes em partilhas. E olha para dentro de ti onde reside infinito, o Perfume das Palavras.

Necka Ayala
27/09/2018

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