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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

As Giletes das Sextas-feiras.

Por estarem vazias, mérito do que o desaviso fez com elas, trataram de cuidar de coisas ainda vivas. Plantas, flores, pássaros que pousavam e se iam dali. Mãos de cujos tamanhos e intenções já nem ela mesma sabia mensurar. Tratou de dar sentido aos calendários, prestar atenção nas mudanças de fases da lua para que entendesse melhor sobre podas e plantios. Observou mais ao que diziam os ponteiros, aprendendo a hora de cada pouso e cada caça, cada aquisição e decolagem – asas muitas, cores diferentes, cada par em seu momento do dia – coisa agendada pela mãe natureza que de tudo entende. Com o passar do tempo e os tempos livres entre umas coisas e as outras, ensinou às próprias mãos a podarem seus cabelos. Também ali havia mudanças notórias, pontas prateadas pareciam multiplicarem-se a cada vez que se dava ao cuidado consigo. E, embora ninguém mais fosse notar, notava ela a si mesma, conferindo valor ao que acontecia. Só ela sabia a idade que de fato tinha. Não parecendo, tomavam-lhe por nova, coisa que não era há muito. Achavam-se no direito, as gentes, de pedir-lhe documento que provasse ter nascido há 5 décadas. Se ria disso. E a ela parecia tão óbvio que não houvesse motivos para mentir uma idade para cima... coisa de pessoa humana, dotada de espantos pelo que seja tão simplesmente bom. 
Às sextas-feiras, era dia das mãos manejarem giletes. Tratar da pele que, uma vez desnuda, deixava poros abertos para os cremes de cheiro. Ali sim, constatava alterações maiores, mais nítidas, na entrega das carnes ao abandono e ao tempo. E, mesmo que ninguém fosse mais tarde se ocupar de pousar outras mãos sobre a superfície ainda lisa que tinha guardado sem querer, seguia o ritual, esperava por mais uma semana que o futuro se lhe aparecesse sem aviso, um inesperado.
Um dia, numa tarde qualquer olhando pela vidraça, deu-se conta de que a fé era quem conduzira sua jornada até ali. Uma fé não premeditada. Fé na força do broto que transpõe terra e vem à tona; fé na precisão inconsciente do pássaro, desprovido de relógios que sempre pousa e parte à mesma hora; e na destreza das mãos enquanto poda fios que os olhos não enxergam; e na habilidade delas caçando pêlos negros que reincidem a despeito do fio daquelas lâminas. Deu-se conta de que a fé era o que lhe habitava as mãos. Uma sem dimensão nem pretensão alguma de ser tanta quanto era. Era apenas. Olhou comovida para as duas palmas abertas, ciente do quanto sabiam fazer. A quanta coisa haviam dado vida e permanência, lida e consciência.
Outra sexta-feira viria. E ela esperava que fosse, que viesse, que chegasse, que quisesse, que ficasse, que pudesse...

Necka Ayala

17.12.13

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