A
Dona de Casa sabe. Passou por tanta coisa, sabe. Conhece o que acontece em cada
canto. Sabe que o sol clareia os panos brancos, alvejamento natural de quentura
e exposição aos raios. Uma dona de casa sabe como tirar as manchas do sofá
recém matizado de café e coca-cola. Tem sabedoria acumulada porque já viveu
sofás, penteadeiras, cortinas rotas, já cortou panos de prato com as próprias
mãos e sabe que o tecido se rasga reto largura afora. Ela é a dona da casa, a
anciã que hospeda desencarnados invisíveis e ruidosos a passear pelas noites
solitárias. Sabe de onde vem cada dor de cabeça e que osso range quando
anoitece. Sabe costurar peças queridas e colar quebrados com cola de farinha em
caso de faltar uma adequada — e põe na lista, quase que imediatamente. A dona
de casa fecha as janelas ainda que o sol esteja a pino, prevendo chuva que vem
logo. E evita baratas e formigas espalhando cravos pelos rodapés. Sabe os dias
dos santos e, vez em quando, se rebela contra eles depois de esgotadas todas as
preces que deram em mais dos mesmos nadas. Assiste aos programas de tv e
constata que as mãos trêmulas de Caetano anunciam a visita implacável do tempo.
E lamenta que seus guias maiores também envelheçam e se quebrem como os copos
que insistem em contarem ímpares. Sempre ímpares. Ela se conforma. Ela se
resigna. A dona da casa é a dona daquilo que conhece, que ensina, que não detém
só para si mesma. Forjada a ferro e fogo, ela teve de aprender a oferecer a
sapiência e se dói por tudo que não foi dado a ela por mais que esperasse. E
esperou. E espera. Olha o fogão enferrujado, o fero velho que já não passa; se
depara com as batidas nas quinas de suas velharias sagradas e lastima. Não irão
com ela. Nada irá quando ela se for dali, de suas coisas, de sua casa. Ela
cuida. Defende. Tenta manter intactas as coisas para tentar manter-se intacta
diante dos ponteiros. E todas envergam juntas, comungadas no exílio da soma dos
anos. Esse lugar é só dela. Ser só é dela. É tudo que de fato tem. Percebe que
é lindo ter vivido tanto, o tanto que viveu, a intensidade, a densidade, o teor
disso. Olha para trás e pode descrever cada passagem, cada era, cada mudança de
lua sobre o céu — a seu olhar, cada vez mais difuso. Já pode despedir-se do que
não brilha. O conforto está noutro lugar que aos jovens não compete conhecer. Ela
olha com alguma compaixão que lhe resta e, por dentro repete um adeus
intermitente que se assemelha à chaleira chiando sobre a boca larga. Se pretejar
o inox, fazer o que? É só mais algo que se vai.
Necka
29/01/2018
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