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segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Nem data

Criado o caos, parou ali a contempla-lo. E nunca mais moveu-se. Não comeu do caos. Não bebeu o caos, não tocou, não conheceu a largura e o comprimento do caos. Parou ali e nunca mais moveu-se. Não falou com o caos. Não confessou delito. Não desabafou, não disse, não fez. Paralisou ali qualquer coisa. Nunca mais sentiu. Nem nada. Leveza esquecida. Vagalumes nos postes da rua deixados pra lá. Lua partida ao meio vagando abestalhada num céu sem todo. Criou o caos a bel prazer pra nada. Não fez uso. Não fez filho. Não fez poema, não saiu gota. Não nada. Congelou a coisa amorfa que levava dentro e meio que batia desconhecida do porquê. Não fez pulso, não teve, não foi de ninguém. Não causou, não estava, não-fotografia. Danificou o que tinha de tão feliz que fora e jogou fora — deu de petisco ao caos aquilo tudo que era bom e sabia. E o caos mordeu faminto com todos os dentes cariados achando que, se digerisse aquela luz, curaria a si mesmo e se transformaria milagrosamente em algum deus. Até o caos teve esperança. Não teve. Não plantou pra ter. Não fez o presente. Parou ali mesmo no que era e deixou semente apodrecer quieta dentro da mão inútil, inerte. Perdeu a chance, perdeu a vez, perdeu ao que sentia — perdeu a tudo. Olhou o solo tornado seco e nem lamento, nem nada. Nem lágrima, nem arrependimento, nem menção de coisa qualquer sentível. De repente o caos, exausto de ser visto, bradou: o que sou hoje é o que fizeste ontem. Não construiu, não há. Parou ali mesmo diante dele e nada teve a fazer. Agora era livre na viuvez. O corpo magro da felicidade jazia se decompondo diante de seus olhos gélidos e foscos. Para quê, pensou num rompante. Para quê criar o caos ao fim de tudo isso? Nem resposta. Nem companhia. Nem presença, nem data, nem nada.

Necka Ayala

29/01/2018

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