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quarta-feira, 21 de março de 2018

Desarmar


Larguemos as armas. Há peso demais em mãos de artilharia. Fel nas palavras que temos disparado. Estamos em falta de delicadeza. Larguemos as armas. Elas não prestam. Distorcem o propósito dos nossos braços, fazem levantes raivosos onde mais precisamos da serenidade e da ternura  — e é já! É agora que precisamos respirar o mais profundamente que pudermos para, soltos de tudo que nos embarga a voz, irmos correndo atrás de tudo que perdemos: doçura, poesia, água da fonte, raio de sol quebrando o gelo do amanhecer de nossos outonos. Larguemos as farpas, os agulhamentos, os fios das lâminas. Deixemos para os vis as declarações de guerra — estamos fartos. E o armamento traz o cheiro ruim do aço aos nossos dedos, empunha nossos indicadores contra nossos semelhantes. Não podemos mais permitir que o veneno recém transbordado desse vulcão de horrores, nos contamine a ponto de ficarmos como eles são, loucos entregues aos próprios desvarios, errantes batendo cabeças contra as paredes das celas. Sim, façamos que nossas vozes sejam ouvidas, claro! Mas de modo acima de tudo isso que aí está. Quando destamparam essa coisa toda que vivia debaixo dos tapetes, fomos nós que recebemos na cara o jorro da lama toda. Mas não podemos nos enlamear também, acometer nossas almas tristes e desiludidas dessa coisa densa que se derrama a toda hora diante de nossos olhos. Larguemos as armas. Deixemos que eles atirem, enquanto esticamos os braços ao longo do corpo e procuramos a redenção de luz que ainda resta. Esta! Esta que nos quer num futuro melhor e mais decente. Esta que reacende a cada coisa pequena e boa que o Criador insiste em nos mandar vez que outra, de repente, como Ele é: um sorriso bobo de uma criança que passa, uma folha nova numa planta antiga, um gosto bom qualquer da infância que tivemos. Respiremos fundo e façamos despir a raiva. Deixemos que eles sigam assim, insanos, desvairados feito carros de auto-choque batendo e batendo uns contra os outros, todos afobados, apressados em sugar mais e mais para si mesmos. Sim, deixemos os abutres se fartarem do que não queremos nós obter. Uma hora dessas isso tudo há de lhes fazer tanto mal, que sucumbam. Larguemos as armas nós. Pois, simplesmente, podemos. E queremos de volta as mãos leves para os breves afagos à vida e a mãe terra. Queremos de volta o calor dos abraços dos amigos, dos irmãos. O fogo aceso, o aroma do alimento, a mesa posta perante a luz da lua. Um livro no colo e uma manta sobre as pernas num dia de chuva. Queremos dormir em paz as nossas noites, finalmente. Falta pouco para que a depuração se conclua. Sabemos quem são, onde estão e o quão enfermas estão aquelas mentes. E quase já nos furtaram a tudo, quase! Não conseguiram tirar o que somos, o que sentimos ainda que neste momento pareça só tristeza protagonizando nossas cenas. Não nos tiraram a coisa mais sagrada e longeva que sentimos: esperança.

Necka Ayala. 22/03/2018

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