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segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Tu e o Café


Antecipaste o fim de algumas coisas. Antes mesmo dessa etapa se iniciar, forjaste em mim, dentro, profundamente as fibras necessárias. Foi a ferro e fogo sim. Não nego. Doeram o osso do peito, todas elas, cada uma. Extraíste de mim uma pessoa que eu não era, quase que inquebrável de tanto que deu de cara com a quebra dos sonhos que tinha. Lapidaste minha mais bruta essência, convertida em revolta, em exatidão da verdade mais crua. Não sei se sabias. Mas foi preciso tudo que fiz, cada copo jogado contra a porta, o ruído raivoso deles se partindo, combinando com o que vinha feito onda sobre a minha cara estarrecida. Meus santos de casa, eu os pus de lado e adotei a outros, mais mundanos, mais humanos cujas providências são mais próximas daquilo que preciso agora. São mais objetivos, respondem logo, fazem andar o tempo e sabem fechar as chagas. Aqueles outros de minha antiga devoção apenas contemplavam as dores dos homens, orando por eles, tendo compaixão e era isso. Recorri a novos guias para dar cabo das novas demandas. Pois aconteceu que a bebida mais sagrada, que me foi desde sempre conforto e segurança, a lembrança da mãe que tive, me foi proibida de uma hora pra outra. Não posso mais sorver aquele gosto maternal, nem ter por dentro a sensação familiar de que tudo está bem. Quente, recém passado, cheiroso, convidativo — não posso tê-lo mais como ele era. Nem a ti. Que coisa irreversível é perder a tudo quanto nos assegura algum chão debaixo dos pés. Ficar assim flutuando sem direção por sobre tudo, como se fosse uma daquelas viagens para fora do corpo. É assim que me sinto agora. Alheia a mim mesma. Desconhecida. Porque antecipaste as coisas que viriam mas, ainda assim, elas me tomaram de susto. Não me reconheço sem as mãos ocupadas, sem os suspiros longos e a palavra gratidão a cada gole de cada coisa. Dele e de ti. Ambos me foram proibidos. Assim, cancelaram as razões que justificavam ter lábios e vontades. Vago. Olho para tudo e tudo me parece vago. Nada sei sobre isso que me perguntas todos os dias, como se fosse mesmo do teu interesse. Nem a mim interessa quantos, como foi, se venci. Me interessa apenas que algum dos deuses que sigo me determine o fim ou o recomeço. Que um deles bata o martelo e diga a sentença de uma vez por todas, pois não suporto mais esperar. Demiti eu mesma meus patrões que mandavam pôr ordem na casa. Quebrei os padrões, as rotinas, os hábitos queridos que vinham comigo desde a infância que nem lembro. Os trouxe, pois imaginava que iria precisar deles. Pois foram proibidos pelos sábios cientes. Logo flutuo. Pairo sobre o que era minha vida. E quando não dá mais, dou uma escapada rápida, pego o filtro, aqueço a água, preparo forte e bebo como se fosse o último, dizendo por dentro, gratidão e dane-se! Depois acendo com calma e trago. Às vezes é preciso apenas gritar silenciosamente, dane-se. Eis a danação inteira. Toda ela. E esse não era o final feliz que prometeram nossas coisas do passado. Nem era esse endereço, nem era esse piso, nem tínhamos tantos cômodos. Como fomos felizes quando fomos nós. Acho que me lembro um pouco mas faz tanto tempo... Tu e o café. Tu e o café. Tu e o café.

Necka
20/11/18

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