Seguidores

domingo, 6 de outubro de 2013

Ele


Ele me seguia enquanto ia assim, desordenada, amaldiçoando as pedras do chão e as calçadas disformes. Ele amortecia o solo enquanto ia andando assim, contrariada, sem mapear distâncias e idas indevidas. E estava ali, quando pronunciava mil perguntas aparentemente irrespondíveis. E me ouvia blasfemar e alvejar minhas próprias esperanças corroídas. O tempo parece desgastar o tecido no qual se tece uma esperança. Mas apenas parece, não é. Não é assim como vemos. O tempo desgasta a visão da qual tentamos tirar entendimento. E ele estava ali aguardando o tempo do real entendimento. Enquanto gritava aos céus minha revolta e minha mágoa, ele colhia o sal derramado e o tornava de volta ao mar do esquecimento. E ia, e ia mais e tornava a gritar por socorro e alento. E ele estava dando isso tudo o tempo todo, ao mesmo tempo. Ele me esperava enquanto me perdia. E me receberia antes se eu tivesse chegado antes aonde ia. Ele me aventava as ideias enquanto buscava uma inspiração qualquer que nunca vinha. Esvaziava-me a cabeça enquanto batia a cabeça contra as paredes por mim erguidas. E não ouvia. Ele acomodou meus planos junto aos seus planos enquanto desistia. Guardava as horas mais sagradas em suas mãos benfeitoras e pacientes. Guardava as chaves da morada, mantinha as sementes regadas e uma réstia de sol por sobre tudo. Arejava os cômodos, esperando que viesse a habita-los, sentindo-me em casa em mim mesma e eu era a casa. Ele me preparava o alimento para a hora precisa da fome, quente e sempre recém feito. E só via a fome e a ânsia de sorver alguma vida. Ele decorava o céu com nuvens e as ruas com pessoas desconhecidas, para que me sentisse um pouco perdida e ele pudesse ser buscado como companhia. Estava o tempo todo lá e não o via.
Hoje o vi de novo, de relance, como aparição, como divindade, como sensação que escapa quando se quer prendê-la, fazendo-a durar mais um instante. E ele estava dentro, sempre ali, eternamente sereno. Esperando por mim que dava a volta ao mundo enquanto isso. Ele estava em mim como estou nele. Eternamente pronto, e eu, eternamente em movimento, sendo lapidada por mim mesma e meus enganos, meus acertos, minhas certezas e minhas perguntas. Vamos juntos, assim mesmo, encontrados e perdidos, mas juntos para todo um sempre que ainda desconheço.

Necka Ayala
06/06/10


Nenhum comentário:

Postar um comentário