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sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Carlos Bracher

Observo diariamente as plantas desta casa. Quando amanhece, a primeira coisa é andar de pés descalços — a fim de preservar o sono dos três amores — até a porta da varanda e olhar para elas. Tenho sempre cuidado quanto ao sono alheio, uma espécie de reverência ao descanso merecido. Mas preciso ver o verde quando acordo. Não raro, avisto broto ou flor, folha ou coisa qualquer recém nascida por ali, misturada ao todo. Coisa que não vi nascer. Volta e meia ouço canção nova, composta há pouco – coisa que não vi nascer. Até este dia que já está desperto em mim desde às 4 horas, só tinha visto nascer aquilo ao qual dei vida — troços, letras, caixas, fotografias. De repente, estou lá, diante dele e de uma tela em branco, feito a folha em branco que me encontra todos os dias. O vejo parar em frente à tela, como se ela sussurrasse qualquer coisa parecida com um convite ou um flerte. Se miram, os dois, ele e a tela. Ele acaricia a superfície ainda intocada, como que pedindo licença, antes da mácula colorida e bem vinda, abençoada pelos deuses da arte. Ela consente. Ouço acordes pairando e as mãos dele iniciam o movimento, regendo com um pincel o primeiro instante. Um transe, um mergulho, algo que não compreendo e que me absorve. Freneticamente, ao sabor do que ouve, ele se agiganta, reproduz o que só sua alma está vendo. Escolhe cores. As cerdas cobertas delas se encontram com a pele da tela. Ali, música e movimento rascunham uma imagem. Aos poucos se vê. Contemplo. Porque assim me definiu um homem chamado Francisco: esse homem nu sou eu, olhos de contemplação. Contemplo a ele em frente à tela parindo a obra, a pintura, a comunhão de cores, a permanência. Observo seu semblante ora insano, ora apaixonado, ora veloz, ora acalmado. Ele mesmo às vezes pára e fita a si mesmo refletido no brilho da tinta fresca. Estende o braço esquerdo em direção ao retratado e volta a pincelar. De fora, nada se entende sobre os riscos rápidos e desordenados que ele comete. Outros olhos pasmam diante do que assistem, além dos meus. Ao final de tudo, ele me abraça e diz: a música, é azul — esse azul! Ele tem as mãos cobertas de tintas e segura um pedaço de pano com o qual as limpa. Eu, os olhos alastrados de fascínio.


Necka Ayala – sobre Carlos Bracher.

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