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quinta-feira, 18 de maio de 2017

Não Jardim

Vens para colher flores trazendo foices por dentro das mangas dos casacos. Os brotos se assustam, gritam de medo, recuam, desistem. Eles sabem: não devem florir agora, ainda não. Vens pedindo o aroma das flores, que elas o dêem a ti que vens com cansaços e obstruções. Elas não florescem. Se encolhem à luz da lua minguante da noite. Porque vens espreitando ainda. Ainda não tens certezas nem verdades nuas, desmascaradas. Nem tens vontades, nem tens quereres. Vens contando que algo te sobrevenha de repente, mas não tens merecimento sobre aquilo que almejas. Queres jardins, queres o verde, queres o ar puro e a gota mais lúcida de orvalho, logo cedo de manhã. Mas pisas sobre a relva calçando botas com pinos de ferro. Não é assim que se visita às flores. A elas, se vai com delicadeza e mãos leves. Delas, só se tem a sutileza breve e a rapidez do tempo. Algumas duram somente umas poucas horas: quem as viu, as viu. Quem não, não mais verá. E vens de olhos sempre cerrados, tropeçando em tuas intenções e causando danos. Sem doçura, sem carinhos, sem entender que são vivas, sentem, se machucam quando não amamos flores. Queres delas somente o que elas têm a dar. E nada ofereces de teu a elas: nem alimentos, nem regas, nem podas; nem afagos, nem miradas, nem fotografias. Nem lembranças, nem encantarias. Tu colhes, te aproprias tirando a vida dali — levas contigo e dizes sobriamente: não consigo sentir aroma algum. E a jogas no lixo, uma a uma. Vais cortando e não conseguindo sentir nada. E morrem, uma a uma sem destinação. Sim, todas têm seu perfume e querem que ele tome o espaço em volta. São livres para ser o que são. Mas tu não sentes. Tu não as sentes. Não consegues mais sentir. Porque não queres, na verdade — não queres flores. Queres vasos vazios e nada de vida. O nada. E elas, as flores, ainda se compadecem de ti e sentem pena. Lamentam. Torcem para que um dia teu peito possa bater novamente florescido, ele. Mas quando ele começa, tu interrompes e dizes numa confirmação do nada: não! E decretas sempre um outro fim num outro dia que se repete. Sempre o mesmo. Tens a isso, sempre o mesmo, nada de flores, vasos vazios e um peito que carrega fardos e penas. Uma secura em teu solo, de que te serve? Infértil, inapto, esvaziado de função. Para que o queres, se não para lamentares pelo arrependimento de ter vivido e desistido? De ter nascido e parado de viver? Vens querendo colher flores desde que elas não te ofendam sendo o que são, flores apenas.

Necka

19/05/2017

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